quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

A nossa gente


Hoje voltei a encontrar a Arlete no meio de novelos, agulhas e um bolo de limão tão perfumado que quase se podia vestir. Lá estava ela, a mesma de sempre, sentada sem nunca estar parada. Há pessoas assim, que desafiam os números, como se o tempo tivesse desistido de as convencer. No cartão de cidadão dizem que tem 87 anos, mas toda a gente sabe que é mentira. Nem 70 lhe davam, e mesmo assim era favor.
O espaço era um museu vivo. Entre os teares e os crochés, o passado respirava sem precisar de legenda. A Arlete pegou num novelo como quem segura uma história inteira. “O que me custa”, começou, enquanto os dedos faziam magia, “é ver tanta gente a esquecer isto. O que é nosso.” Disse-o sem mágoa, mas com aquele tom de quem já viu o suficiente para saber como as coisas acabam.
Falámos como sempre falamos, de tudo e de nada. Das rendas antigas, do tempo que as mulheres fiavam com paciência, da vida que hoje ninguém quer esperar. “Agora fazem tudo a correr, como se tivessem pressa de acabar”, resmungou, com um meio sorriso. “Mas há coisas que precisam de tempo.” Fiquei ali, a vê-la alinhavar o passado no presente, e a pensar que talvez seja isso que nos anda a faltar: fiar melhor o tempo, em vez de o gastar sem pensar.
Chegou a hora do café e do vinho do Porto e do bolo de limão, e com eles vieram memórias servidas sem medida certa. Algumas doces, outras amargas, todas demasiado grandes para caberem num gravador. Algumas coisas só existem assim: no momento, sem repetição.

Maria José Afonso

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A nossa gente


A D. Arlete estava ali, junto ao tear, com aquele ar de quem nunca esteve noutro sítio. Não era bem uma questão de estar – era mais uma espécie de permanência natural, como uma pedra no meio do rio. Entre novelos e linhas, cercada pelo que sempre foi dela, olhava para a vida com a serenidade de quem já aprendeu que a pressa só atrapalha.
À sua frente, alguém fazia perguntas. O Telemóvel era um intruso educado, demasiado moderno para aquele cenário, como um carro estacionado dentro de uma capela. A luz da tarde entrava pela janela, filtrada pelos sacos pendurados, que balançavam suavemente, cúmplices da conversa. Ali, tudo tinha o seu ritmo, um compasso próprio, como se o tempo também se deixasse fiar.
O tear de madeira , continuava a sua vigília. Já tinha visto de tudo: dias bons, dias maus, mãos trémulas e mãos certeiras. Sabia que não valia a pena apressar o fio nem a vida. E se falasse, talvez dissesse exatamente isso: que hoje anda tudo acelerado e já ninguém sabe dar à manivela sem estragar o bordado.

Maria José Afonso (Rádio Montalegre)


 

domingo, 26 de janeiro de 2025

Gente de Vila da Ponte

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

A nossa gente

Alice Branco é mulher de rija têmpera, daquelas que a terra molda com o tempo. Vila da Ponte, a aldeia onde nasceu, carrega nos montes e vales as marcas de quem aprendeu a viver do que tinha, sem desperdícios. Aos 81 anos, continua a dedicar-se à arte de estremar as tripas do porco, um saber antigo que resiste ao passar das gerações, mesmo quando as mãos mais novas evitam o trabalho, o cheiro, e até o olhar para o que é preciso preservar.
“Foi a sua mãe quem lhe ensinou?” A pergunta faz Alice levantar os olhos por um momento, antes de responder com simplicidade. “Foi. Naquele tempo, aprendia-se tudo. Nada se deitava fora. Tínhamos de aproveitar o que havia.” Enquanto fala, mostra o redanho, esse pedaço que muitos descartariam, mas que nas suas mãos tem valor, como a prova de tempos em que tudo servia para algo.
E quanto às filhas? Têm também o mesmo jeito para o ofício? Alice suspira ligeiramente, enquanto os dedos ágeis continuam a separar gordura e a limpar com precisão. “Nem todas. A do meio ainda se mete nas chouriças, tem um jeito especial, mãos delicadas para o trabalho. Mas agora os tempos são outros. Elas têm vidas diferentes.”
No armazém onde trabalha, o ambiente é simples, mas carrega a essência do que foi. “Antigamente, isto juntava a aldeia. Quando se matava o porco, fazia-se serrabulho, havia fartura para todos, e os homens reuniam-se depois da faina. Matei muitos porcos, cinco ou seis por ano. Fazia quase tudo sozinha. Mas agora, em casa, já não faço nada disso. Há dois anos que não mato porco nenhum. Só ajudo aqui.”
E o futuro, Alice? O que será deste saber se os seus gestos pararem? Alice responde sem hesitar, com o mesmo ritmo firme das suas mãos no trabalho. “Se as novas não quiserem aprender, fica tudo por aqui. Mas enquanto puder e souber, vou fazendo. É o que sei.”
Naquele espaço simples, sem lume, os movimentos de Alice guardam ainda o peso da memória. Cada gesto é uma forma de resistir ao esquecimento, de manter viva uma tradição que, mais do que alimentar corpos, sustenta a identidade de um povo que aprendeu a transformar cada sobra em riqueza.

MJA

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O combarro


Na manhã fria de Barroso, o combarro, um telhado sem paredes erguido no pátio da casa, desperta silencioso, guardando apenas lenha e fardos de palha. Já não protege os grãos dourados da última colheita, nem assiste à azáfama dos dias em que o milho e o centeio eram ali depositados com um gesto quase solene. Agora, os feixes de palha amontoam-se sob o telhado inclinado, cobertos de pó e silêncio, enquanto a lenha, seca e áspera, aguarda a lareira do inverno, como um último serviço à casa que ainda resiste.
O lavrador sai pela porta de madeira, como faz todas as manhãs. No rosto marcado pelo tempo, a pressa é menos do que antes, e o olhar pousa, por um instante, no combarro. Ele aproxima-se devagar, ajeita o chapéu, e com uma mão firme retira um tronco de lenha, pesado e nodoso, que lança ao ombro com o hábito de quem já não pensa no esforço. A palha permanece, intocada, uma sombra dourada sob o telhado escuro, esperando que os animais regressem ou que uma urgência qualquer reclame a sua utilidade.
Outrora, o combarro fora este simples abrigo improvisado, aberto ao vento e ao olhar de todos. Fora parte essencial da casa, erguido para preservar o sustento da família contra a humidade traiçoeira e as intempéries. Hoje, parece apenas um armazém improvisado, um depósito de sobras úteis, mas o seu telhado inclinado, sólido e resistente, continua ali, cumprindo a missão que lhe foi dada há décadas.
Ao meio-dia, as crianças correm pelo pátio e espreitam o combarro como se ele guardasse algo invisível. De vez em quando, um gato salta ágil sobre os fardos, procurando abrigo ou apenas brincando entre as frestas do telhado, onde a luz do sol dança em feixes tímidos. Nada ali parece extraordinário, mas o combarro permanece como uma peça da casa, uma parte viva da paisagem, embora agora menos necessário, menos notado.
Quando a tarde cai e as sombras das montanhas se alongam, o combarro observa, imóvel, o lavrador regressar. Mais alguns troncos retirados, o tilintar de um machado ali encostado. A lenha diminui lentamente, os fardos de palha acumulam pó, mas o velho telhado sem paredes resiste ao passar das estações. Um dia, quem sabe, voltará a guardar grãos, a ver mãos cuidadosas ajeitarem cestos de centeio ou milho. Até lá, permanece fiel ao que é: um abrigo silencioso, parte do que sobra quando a necessidade dá lugar ao hábito.
(2013)


 

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Natal a chegar...

Serrabulho


Quando o frio se instala em Barroso, a paisagem muda, mas também a vida das gentes, que se organiza em torno de um ritual antigo e cheio de significados: o serrabulho. Com as temperaturas a descer, cumpre-se a tradição que atravessa gerações, unindo famílias, vizinhos e amigos numa jornada que é muito mais do que a preparação de um petisco – é a celebração do comunitarismo.
Ao romper do dia, no mata-bicho que marca o início da labuta, a mesa já acolhe iguarias que ninguém esquece e que alimenta o corpo e a memória coletiva de uma terra que sabe tirar proveito de cada recurso. É uma refeição que não se limita a saciar, mas que une.
O serrabulho é, antes de tudo, um símbolo de socialização e de solidariedade. A preparação é um esforço coletivo, que cuja "varinha magica" está nas mulheres de Barroso e há sempre quem saiba o segredo da melhor confeção. É um exemplo perfeito de como aqui nada se desperdiça e tudo se rentabiliza, numa filosofia de vida que respeita o trabalho árduo e valoriza a partilha.
Montalegre mostra a sua essência: uma terra de comunhão, onde o serrabulho é alimento, e a prova de que o frio se enfrenta melhor com união e generosidade. E é assim, com simplicidade e sabor, que a tradição continua a aquecer o estômago, e o coração.
MJA


 

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A nossa gente


António Branco, figura emblemática da aldeia, tornou-se um símbolo de persistência numa tradição que, para muitos, já se encontra em desuso. Aos 76 anos, carrega consigo o peso dos anos e o do seu chapéu, companheiro inseparável desde os seus 18. Este adereço é a materialização de uma identidade que remonta às raízes de um povo, a um tempo em que o vestuário para além da função prática, representava códigos sociais e culturais profundos.
Depois de uma boa conversa, com a simpática Alice, sua esposa, António, com um misto de curiosidade e desconforto lá ia falando com a jornalista. Pouco dado a conversas longas, respondeu laconicamente às perguntas sobre o chapéu, mas as suas palavras, entrecortadas por risos tímidos e pausas reflexivas, partilharam histórias de um passado que ele próprio parecia trazer na aba do seu acessório.
“Olhe, o chapéu tem muito que se lhe diga. Sempre usei, desde rapaz. Lá para os 18 anos, quando fui pra tropa, já levava um. Naquele tempo, não se via homem sem chapéu. Era o que se fazia. Agora, veja lá: parece que isso acabou. Mas eu gostei sempre de usar, pronto. Já faz parte de mim. Sem ele, não sou o António.”
As palavras de António remetem para um período em que o chapéu marcava o estatuto social, a maturidade e a transição para a vida adulta. Na ruralidade portuguesa, era símbolo de respeito e decoro, conferindo ao homem um certo “ar de importância”, como ele próprio descreve entre risos. “Aqui no Barroso, usar chapéu sempre foi coisa de homens fortes”, acrescentou.
A jornalista insistiu, intrigada pela relação simbiótica entre António e o seu chapéu:
“E onde compra os seus chapéus?”
“Ah, vou a Cabeceiras ou a Braga. Tem de se ter olho, sabe? Um bom chapéu é pra durar, protege tanto do sol como do frio. Mas agora não se vê disso. Os novos não ligam. Acham que é coisa de velhos. Eu cá uso sempre: na feira, na matança… só tiro quando vou à missa.”
O chapéu, revela-se um elemento de ligação à terra, às tradições e à comunidade. António é o reflexo de uma geração em que a moda não era regida por caprichos efémeros, mas por valores de continuidade e funcionalidade.