Hoje voltei a encontrar a Arlete no meio de novelos, agulhas e um bolo de limão tão perfumado que quase se podia vestir. Lá estava ela, a mesma de sempre, sentada sem nunca estar parada. Há pessoas assim, que desafiam os números, como se o tempo tivesse desistido de as convencer. No cartão de cidadão dizem que tem 87 anos, mas toda a gente sabe que é mentira. Nem 70 lhe davam, e mesmo assim era favor.
O espaço era um museu vivo. Entre os teares e os crochés, o passado respirava sem precisar de legenda. A Arlete pegou num novelo como quem segura uma história inteira. “O que me custa”, começou, enquanto os dedos faziam magia, “é ver tanta gente a esquecer isto. O que é nosso.” Disse-o sem mágoa, mas com aquele tom de quem já viu o suficiente para saber como as coisas acabam.
Falámos como sempre falamos, de tudo e de nada. Das rendas antigas, do tempo que as mulheres fiavam com paciência, da vida que hoje ninguém quer esperar. “Agora fazem tudo a correr, como se tivessem pressa de acabar”, resmungou, com um meio sorriso. “Mas há coisas que precisam de tempo.” Fiquei ali, a vê-la alinhavar o passado no presente, e a pensar que talvez seja isso que nos anda a faltar: fiar melhor o tempo, em vez de o gastar sem pensar.
Chegou a hora do café e do vinho do Porto e do bolo de limão, e com eles vieram memórias servidas sem medida certa. Algumas doces, outras amargas, todas demasiado grandes para caberem num gravador. Algumas coisas só existem assim: no momento, sem repetição.
Maria José Afonso