quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

A nossa gente

Alice Branco é mulher de rija têmpera, daquelas que a terra molda com o tempo. Vila da Ponte, a aldeia onde nasceu, carrega nos montes e vales as marcas de quem aprendeu a viver do que tinha, sem desperdícios. Aos 81 anos, continua a dedicar-se à arte de estremar as tripas do porco, um saber antigo que resiste ao passar das gerações, mesmo quando as mãos mais novas evitam o trabalho, o cheiro, e até o olhar para o que é preciso preservar.
“Foi a sua mãe quem lhe ensinou?” A pergunta faz Alice levantar os olhos por um momento, antes de responder com simplicidade. “Foi. Naquele tempo, aprendia-se tudo. Nada se deitava fora. Tínhamos de aproveitar o que havia.” Enquanto fala, mostra o redanho, esse pedaço que muitos descartariam, mas que nas suas mãos tem valor, como a prova de tempos em que tudo servia para algo.
E quanto às filhas? Têm também o mesmo jeito para o ofício? Alice suspira ligeiramente, enquanto os dedos ágeis continuam a separar gordura e a limpar com precisão. “Nem todas. A do meio ainda se mete nas chouriças, tem um jeito especial, mãos delicadas para o trabalho. Mas agora os tempos são outros. Elas têm vidas diferentes.”
No armazém onde trabalha, o ambiente é simples, mas carrega a essência do que foi. “Antigamente, isto juntava a aldeia. Quando se matava o porco, fazia-se serrabulho, havia fartura para todos, e os homens reuniam-se depois da faina. Matei muitos porcos, cinco ou seis por ano. Fazia quase tudo sozinha. Mas agora, em casa, já não faço nada disso. Há dois anos que não mato porco nenhum. Só ajudo aqui.”
E o futuro, Alice? O que será deste saber se os seus gestos pararem? Alice responde sem hesitar, com o mesmo ritmo firme das suas mãos no trabalho. “Se as novas não quiserem aprender, fica tudo por aqui. Mas enquanto puder e souber, vou fazendo. É o que sei.”
Naquele espaço simples, sem lume, os movimentos de Alice guardam ainda o peso da memória. Cada gesto é uma forma de resistir ao esquecimento, de manter viva uma tradição que, mais do que alimentar corpos, sustenta a identidade de um povo que aprendeu a transformar cada sobra em riqueza.

MJA

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