Na recôndita e pitoresca aldeia de Vila da Ponte, onde guarda em si o tempo como quem segura um punhado de terra firme, surge a figura nostálgica de João Moura, octogenário de porte robusto e coração saudosista. Homem da urbe, fixado há longos anos em Lisboa, não renuncia, todavia, ao chamamento irresistível da sua terra natal, como se o pulsar das serras do Barroso lhe fosse indissociável da própria essência.
Era dezembro, e o sábado trazia consigo a antiga cerimónia da matança do porco, um ritual sacrossanto que atravessa gerações e se firma como um esteio da identidade local.
Lá estava ele, João Moura, de tabuleiro em riste, as mãos firmes na missão que lhe competia, o olhar carregado da sabedoria dos que já presenciaram muitos invernos, desempenhando a sua parte com a naturalidade de quem não aprende, mas herda. À espera dos rins, da língua e dos cortes que adornarão as mesas da aldeia, o patriarca exibia um sorriso bonançoso, enquanto declarava com modéstia, "aqui, todas as ajudas são bem-vindas".
E, num tom quase confidente, deixava escapar um desabafo: "já há poucas pessoas a matar porcos. Isto é uma alegria para a gente, até para mim, que sou velho". E ria-se, com a leveza de quem sabe que rir é também parte da comunhão.
As reminiscências de outrora assomavam-lhe à mente como um filme vivo de recordações. Havia um tempo, dizia ele, em que as casas matavam porcos em abundância, dez ou doze por temporada, e os armazéns regurgitavam de presuntos, chouriças e outros acepipes que sustentavam famílias inteiras. A terra, generosa como só ela, oferecia o que era necessário: erva, milho, batatas e bolotas alimentavam os animais, que por sua vez garantiam o sustento humano.
Nada se desperdiçava; até o sangue tinha o seu destino certeiro, transformando-se em sarrabulho, essa iguaria que ainda hoje inunda de aromas os recantos do Barroso.
A matança do porco, contudo, transcende o domínio do alimento e adentra o das relações humanas. João recordava os tempos em que se ia de casa em casa, numa partilha de esforços e alegrias. "Era uma ajuda mútua, uma festa", rememorava, com olhos marejados.
Enquanto os homens lidavam com a tarefa mais pesada, as mulheres temperavam o sarrabulho, garantindo que ninguém partia de estômago vazio nem sem o calor da hospitalidade comum. Aos 82 anos, João Moura ainda encontrava nessas ocasiões o fio invisível que o ligava às suas origens, aquele laço que o fazia regressar, religiosamente, em maio, junho, outubro e, claro, dezembro.
"Adoro a minha aldeia", confessava com simplicidade e orgulho. Vila da Ponte, essa pérola silenciosa e intemporal, parecia acolhê-lo com a mesma ternura de sempre, como quem reconhece um filho que nunca se desligou verdadeiramente. No final da jornada, entre o aroma acolhedor do cozido e o burburinho das conversas, João despedia-se, prometendo voltar. E todos sabiam que voltaria, porque quem pertence à terra nunca a deixa verdadeiramente, e a aldeia, fiel e eterna, estará lá, à sua espera.
A história de João Moura, de Vila da Ponte e da matança do porco, será narrada na grande reportagem a emitir na Rádio Montalegre, terça-feira às 22:00, sábado e domingo às 08:00.
MJA
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